Amigos,
Minha preocupação com a preservação dos nossos direitos fundamentais só aumenta.
Foi divulgado que o Governador do Estado de São Paulo, João Dória, ameaçou prender os cidadãos que não respeitarem as medidas de quarentena estabelecidas pelo Poder Executivo daquele Estado.
Com o devido respeito, tal prisão seria ilegal.
Explico.
Preceitua o art. 268 do Código Penal:
"Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa".
Trata-se de uma normal penal em branco que requer a complementação de outra norma para sua efetiva aplicação. Isso porque o tipo penal não define o que vem a ser a mencionada "determinação do poder público". Esclarece a doutrina:
"O crime em análise é modalidade de norma penal em branco, pois exige complemento por lei ou ato administrativo no qual o poder público faça determinação expressa visando impedir a introdução no País de doença contagiosa ou a sua propagação"1.
Assim, o complemento do delito tipificado no art. 268 do Código Penal é feito pela Lei nº 13.979/2020, lei que define as medidas que podem ser tomadas pelo poder público para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus.
O art. 2º, inciso II de mencionada lei assim define a quarentena::
"Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
(...)
II - quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus".
Percebe-se que a quarentena visa a restrição e não a proibição de atividades, ponto que deve ser salientado. Restrição significa imposição de limites, de condicionantes. Em outras palavras, a restrição de uma atividade apenas impõe limites à sua prática, mas não proíbe que seja realizada. E não é o que temos visto em muitas entidades federativas.
Indo além, o art. 3º, inciso VI da Lei nº 13.979/2020 estabelece como deve ser feita a restrição das atividades:
"Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
(...)
VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)".
Dessa feita, a restrição somente poderá ser aplicada pelas autoridades públicas de forma excepcional e temporária, mediante recomendação da ANVISA e com o objetivo de restringir (e não proibir, frisa-se!) a entrada e saída do País e a locomoção interestadual e intermunicipal.
Perceba-se assim que não há qualquer menção à locomoção dentro do território do Município, ou seja, não há base legal para a prisão de um indivíduo que desobedeça as determinações das autoridade públicas e se locomova dentro dos limites do território do próprio Município em que se encontra.
Note-se também que a própria liminar deferida pelo Ministro Marco Aurélio na ADI 6341 não contraria tal entendimento, haja vista ter se limitado a conferir aos Estados a competência concorrente para tratar dos temas contidos na Lei nº 13.979/2020 sem alterar as definições que dela constam. Além disso, as normas gerais estipuladas pela União no âmbito da legislação concorrente não poderão ser contrariadas pela legislação suplementar dos Estados, nos termos do art. 24, §4º da Constituição Federal.
Assim sendo, a conduta de se locomover nos limites territoriais do próprio Município não encontra subsunção no tipo penal do art. 268 do Código Penal. E salvo engano, ainda não foi editada pelo Estado de São Paulo uma norma complementar, mediante recomendação da ANVISA, determinando a restrição da locomoção interestadual ou intermunicipal, logo,
por ora, qualquer prisão naquele Estado sob a alegação de afronta ao art. 268 do Código Penal seria ilegal.
Por fim, ainda que seja editada referida norma complementar nos termos acima mencionados, dificilmente haverá a prisão dos infratores.
Isso porque, considerando-se a pena atribuída ao delito (detenção de um mês um ano e multa), verifica-se tratar de um crime de menor potencial ofensivo, ou seja, de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos do art. 61 da Lei nº 9.099/1995.
Sendo assim, caso um indivíduo seja flagrado praticando a conduta proibida será encaminhado à autoridade policial, assinará um termo circunstanciado e se assumir o compromisso de comparecer ao juizado não será preso, conforme preceitua o art. 69, parágrafo único da Lei nº 9.099/1995:
"Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima".
Evidentemente, há muito mais a ser dito sobre o tema, mesmo assim, espero ter ajudado os amigos a compreenderem um pouco melhor o motivo de minha preocupação.
Abraços,
Nill.
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1. Victor Eduardo Rio Gonçalves, Pedro Lenza (coordenador). Direito Penal Esquematizado®- Parte Especial (Locais do Kindle 18071-18073). Saraiva Educação. Edição do Kindle.